A equipe da revista ARA e seu conselho editorial convida todos a participar da 12ª edição ARA YMÃ Outono + Inverno 2022 , enviando artigos e ensaios sob o tema:
Artes: outros modos de produção e recepção?
por amanda saba ruggiero
(…) Tratava-se do pressentimento de que o pensamento humano, mudando de forma, mudaria de modo de expressão; a idéia capital de cada geração não se escreveria mais no mesmo suporte e nem da mesma maneira, e o livro de pedra, tão sólido e tão durável, cederia vez ao livro de papel, ainda mais sólido e mais durável. Assim sendo, a vaga fórmula do arquidiácono escondia um segundo sentido; ela significava que uma arte destronaria outra. O que a frase queria dizer era: a imprensa matará a arquitetura.
Victor Hugo,(1830) 2013, p.189
Na maré de incertezas e inseguranças quanto ao presente e carência de perspectivas para o futuro, reencontramos nas mais diversas linguagens da arte meios de sobreviver, acalmar nossos espíritos, alimentar esperanças e expandir indignação perante infinitude de perversidades. Por meio da música, da literatura, das artes cênicas e do cinema, das produções audiovisuais independentes e documentários, das artes plásticas, gráficas e visuais, somos acalentados ou provocados pela sensibilidade artística.
As artes nos vestem de possíveis sonhos para imaginar o apaziguamento climático, a recomposição dos biomas naturais, o reverdecer dos povos originários e das minorias étnicas, femininas, sociais e políticas em distribuição mais justa do alimento e das condições de vida, para algo mais que a tenaz luta hodierna pela sobrevivência.
Doses de humanidade poderiam cair como chuva torrencial, além de molhar nosso planeta com solidariedade, bondade e alteridades geopolíticas. A promessa da revolução digital se mostra cada vez mais avessa à democratização da informação, assistimos atônitos à enxurrada de mentiras, inversão de fatos, ódio e desinformação. A esperada dose de humanidade não cai do céu feito chuva, mas nasce da pele e brota pelo suor, nos poros do esforço e no embate por existir e resistir, respiramos e exalamos arte, sensibilidades belas ou sofrimentos, melodias em palavras, gestos ritmados a pensar e instaurar lugar no mundo. Enfrentamos o atual dilema: o digital matará o humano?
A revista ARA convida todos a pensar em outros modos de produção e recepção da arte, e por meio desta chamada indagativa, reaviva debates acerca das linguagens, perguntamos em coro: o que está acontecendo no modo do fazer artístico? Quais são os outros modos de produção do universo digital? É possível se emocionar assistindo a uma peça teatral online? Há alguma novidade em feituras manuais e processos criativos? E sobre observar, escutar e fruir? A recepção mudou?
O aqui e agora da obra de arte, por mais perfeita que seja sua reprodução, disse Walter Benjamin, encerra sua autenticidade, porém, também a liberta do domínio de sua tradição. A existência em massa, da qual o autor, amplia sua recepção e “atualiza o objeto reproduzido”. (BENJAMIN, (1935-38) 2017, p.15) Se em meados da década de 1930 o cinema era o agente poderoso em voga, hoje estaríamos diante de outro meio, seria possível pensar a produção e a recepção digital? Deste processo intensamente vivenciado nos períodos de isolamento social em meio a pandemia, nos anos de 2020 e 2021, do que se trata ao acompanhar um espetáculo teatral online do sofá de casa, visitar uma exposição ou participar de um show ao vivo ou no vocábulo atual, às populares Lives mediadas por uma tela? Megas e terabytes são capazes de nos emocionar? Qual espaço percorremos sem caminhar e sem movimentar nossos corpos ao visualizar pinturas e esculturas por meio de um tour virtual em uma maquete eletrônica?
Nesse mar de manifestações transmitidas por telas, a exclusão daqueles menos favorecidos se escancara. Para acesso aos inúmeros eventos é preciso rede de dados veloz sem intermitência e computadores, celulares ou tablets atualizados. Dados de pesquisas recentes apontam que a falta de conexão está diretamente ligada à renda, tanto pelo acesso a dados e banda larga, como celulares mais robustos e até mesmo computadores. Assim, perguntamos se a dimensão emancipadora da arte estaria se ampliando ou restringindo com a propagação online das manifestações artísticas. E a produção?
Se “tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação”, estaríamos diante de um paradigma do qual Guy Debord já anunciou passado meio século, o espetáculo como movimento autônomo do não-vivo, como a relação social entre pessoas mediadas por imagens. Se o espetáculo é o modo de produção, estaríamos chegando ao ponto em que a relação se faz somente entre imagens que intermediam pessoas? Enquanto transforma-se os modos de existência das sociedades os modos de percepção acompanham tais alterações e enfim, o que se agrega e o que se perde com outros modos de produção e recepção? Quem está inserido e quem está excluído?
Uma das principais contribuições da teoria estética da recepção, pelo crítico literário alemão Hans Robert Jauss, é a ênfase de que obras de arte só existem dentro da moldura, configuradas pela recepção, ou seja, pelas interpretações que deles foram feitas ao longo da história. Esta recepção é uma fórmula aberta entre a correção e a formulação de nossas experiências. Sua estética acentua de forma particular a historicidade e o caráter público da arte ao colocar em seu centro o sujeito que percebe e o contexto em que as obras são recebidas. Se em meados do século XIX a imprensa atemorizou outras formas de ler o mundo, o mundo digital incita outros modos de produção e recepção das artes?
A Revista ARA convida a comunidade acadêmica, entre alunos e docentes, colaboradores e estudiosos, a pensar sobre os outros modos de produção e recepção das artes, tendo em vista o entendimento amplo da arte para as mais variadas e diversas linguagens e suportes, da música ao cinema, do teatro às artes plásticas, da literatura e poesia às artes públicas e urbanas, da performance à dança. Indaga sobre as diferenças aceleradas ao acesso dos canais e meios digitais, estaríamos ampliando as exclusões perante obstáculos financeiros para acionar dados e conexão de internet em boas condições? Ampliamos o fosso das desigualdades perante as promessas digitais e vivenciamos abismos sociais causados pela exclusão sociodigital? Como é possível ler essas transformações em meio ao bombardeio de dados que nos acomete diariamente? Ações participativas, ativação em comunidades seriam caminhos para atenuar abismos e fronteiras sensíveis?
1. Estudo realizado pela PwC e o Instituto Locomotiva, e TIC Domicílios realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, publicados em 13 de set. de 2021 em matéria do Jornal Estado de S.Paulo, no caderno “Economia e Negócios”.
Referências
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. in Walter Benjamin Estética e sociologia da arte.Trad. João Barreto. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: contraponto, 1997.
HUGO, Victor. O corcunda de Notre Dame. trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Zahar.2013.
JAUSS, Hans Robert. Pequeña apología de la experiencia estética.Trad. Daniel Innerarity. Barcelona: Paidós, 2002.