Quem queimou? 200 Anos de resistência

 Foto: cortesia.

Maria Cecília França Lourenço

Professora Titular Sênior e Líder do Grupo Museu Patrimônio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/ USP, São Paulo, Brasil. mcfloure@usp.br

 

Introdução

“(…) [incêndio] revela uma face contundente sobre o descaso a que estão condenadas as instituições, mesmo quando há uma resistência heroica dos que nelas trabalham.”

Maria Cecília França Lourenço (1999, p.133)[1]

A comunidade museal está em luto ante nova catástrofe a desvelar o lugar discutível assumido pelas instituições científico-culturais, em geral, quando abertas, direcionadas a distintos público em faixa etária e privilégios, em especial os sem espetáculos ou arquitetura reluzente do último criador globalizado. Labaredas dizimaram o museu mais antigo, entre nós – o bicentenário Museu Nacional, situado no Rio de Janeiro, transmutado para esse Palácio ao final do Século XIX.

Resistiu à viagem ao ser trazido parte do alentado acervo pela Imperatriz Leopoldina, talvez imaginando o papel civilizatório que peças salvaguardadas teriam, para aprimorar a vida de populações em geral. Subsistiu à mudança de regime político, após a Proclamação da República e ao leilão, do remanescente, que os mandatários lusos não conseguiram levar, ao serem banidos. Sobreviveu aos esforços para vozes oportunistas, a clamar pela volta anacrônica da monarquia, ditadores, ou acolhimento de resquícios colecionados por postulantes políticos sem representatividade de maiorias.

Escapou a muitas ditaduras, mais identificadas com selas, arreios, coroas, casernas e ordens monocráticas e, por certo, não com apoio de muitos[2]. Também venceu ação depreciativa de reitores e autoridades de plantão, incapazes de entender a importância ética, moral, educacional, simbólica, alegórica, formacional, cultural, científica, histórica, cognitiva, identitária, relacional, entre tantas. Nesse particular, cargos administrativos deploravelmente não garantem compreensão interdisciplinar a docentes, exponenciais em sua área de origem, mas limitados para avaliar e se tornar fruidor habitual de museu, quando se trata de testemunhos materiais de museu, arquivo, biblioteca. Autoridades do executivo apenas visitam em festas, quando isso acontece. Como se divulgou, o último presidente a ao menos visitar o Museu Nacional foi Juscelino Kubitschek, no exercício do cargo entre 1956-61.

Além destes outros profissionais em distintas áreas padecem dessa abstinência e inépcia para captar como cada exposição permanente e/ou temporária advêm de esforços coligados e amplos estudos. Estes e os outros ao viajar visitam museus e se ligam ao ver tragédia como essa. Livros, papeis e peças museicas requerem hipóteses, estudo e pesquisa, capazes de produzir conhecimento e articular conceitos, a partir de emudecidas peças, formas e seres de coleções, como no Museu Nacional. Aqui um enorme diferencial do Museu Nacional, pois, dedicado ao ensino, pesquisa e extensão, com produção impa, esta não se apagará.

Um paralelo se faz necessário: em 7 de julho de 1978, às 23 horas se deu outro marco nefasto para a cultura brasileira: o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi emulado em chamas, como registrei na tese de Livre Docência “Museus Acolhem Moderno”, publicada em 1999. Ali também seguiu-se a busca de culpado, então recaindo comodamente no sistema elétrico e anunciadas iniciativas ditas enérgicas. Seguiu-se saldo das preciosidades únicas perdidas, juntamente com lamúrias sobre falta de apoio para renovar pessoal, equipamentos e finanças, sempre recitados.

Quando se instalou na sede do Ministério da Educação e Cultura / RJ, realizou-se uma exposição (1952), sem a presença do então presidente do país, Getúlio Vargas, contendo trinta pinturas, quatro esculturas da coleção, peças emprestadas e laureadas, antes exibidas na I Bienal e de um artista recém falecido (Lourenço, 1999, p.136). Editou-se catálogo e o registro das obras do MAM/RJ se tornou significativo, pois, não havia nem ao menos rol de obras com identificação patrimonial, ou seja, proveniência, medidas, técnica e mostras anteriores, dano ainda frequente em diversas instituições.

Passados 40 anos, a 2 de setembro de 2018 às 19:30 hora, novo acervo, raro, único e insubstituível se viu na mesma condição e, uma vez mais, sem vítimas, felizmente. Diferentemente de outros, produziu inúmeras publicações, boletins, trabalhos científicos em variadas áreas, dissertações, teses, anais de congresso e geração de estudiosos, sejam técnicos ou em outros âmbitos. Inúmeras coisas essenciais, únicas e valiosas se perderam irremediavelmente. No entanto, permanece sim o métodos e práticas de pesquisa, conhecimento documental, arquivístico, bibliográfico e museal, mas particularmente a luta por um país mais democrático e interessado em disseminar conhecimento em variadas áreas. O Museu Nacional resistirá!

 

Referências

LOURENÇO, Maria Cecília França. Museus acolhem Moderno. São Paulo: Edusp, 1999.

Site do Ibram museudodiamante.museus.gov.br/…/nota-do-ibram-sobre-o-incendio-do-museu-nacio/

Site do ICOM/BR www.icom.org.br/

 

Notas

[1] A tese foi defendida na Faculdade Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

[2] Como se observa nos sites, o Conselho Internacional de Museus/ICOM ao se solidarizar e chamar a atenção para necessidade de melhoria de condições técnicas e em infraestrutura, manifestou colaboração de seus membros. O Instituto Brasileiro de Museus/ Ibram propôs formação imediata de força tarefa para se articular recuperação tanto de instalações quanto do acervo.

Quem queimou_ 200 anos de resistência 3_9_18 [Baixe o documento original]