Seminário Sistemático

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Diferenciação e duração – da filosofia à cultura”

12 de Fevereiro de 2015

Adrienne de Oliveira Firmo

 

Ao se tratar do patrimônio cultural é comum deparar-se com questões referentes a permanências, continuidades e desdobramentos, uma vez que se está falando daquilo que se conserva e coexiste, portanto, de tempo, duração e memória, conceitos seminais da filosofia de Henri Bergson, revisitados por Gilles Deleuze ao enfatizar os conceitos de diferença e duração, fundamentais para a compreensão de tempo e úteis para o entendimento das durações e diferenciações no âmbito da cultura. Dessa forma, o seminário teve como finalidade investigar os conceitos de duração e diferenciação uma vez que mostraram-se intensificadores de questionamentos pertinentes às pesquisas do grupo de estudos.

 

Diferenciação e duração

Para que se conheça o vir a ser de cada coisa, Bergson propõe a intuição[1] como método, pois desvencilharia os dados da experiência das construções e linguagem cotidianas, para que surjam como aquilo que de fato são: dados imediatos, pura qualidade, heterogeneidade e mutação contínua.[2] Sua eficiência adviria da aplicação de regras que orientem a colocação de problemas, a identificação das diferenças de natureza e a solução dos problemas em função do tempo.

Colocar um problema diz respeito a como por questões de veracidade e falsidade e à possibilidade de construir os próprios problemas, bem apresentá-los, inventá-los e criar seus termos.[3] Enquanto que identificar diferenças de natureza permite o discernimento entre aquelas de grau, quantitativas; e de natureza, que determinam o que a coisa é em si mesma.[4]

A percepção coloca o sujeito de súbito na matéria, mas é necessário ultrapassá-la para que se conheça a coisa mesma, em sua diferenciação e duração. Então, a memória atuaria aí, ligando passado e presente e permitindo que algo não seja apenas instantaneidade, mas que dure no tempo. Para que se compreenda e represente aquilo que dura e aquilo que se diferencia de um objeto a outro, requer-se, então, a combinação da percepção do dado material mais a memória, dado temporal.

Solucionar os problemas em função do tempo é supor sua duração ou sua permanência. Para ilustrar as inúmeras diferenças, Bergson apresenta o torrão de açúcar, apreendido como uma diferença de grau em relação a qualquer outra coisa, mas que possui uma maneira de ser no tempo, duração, revelada no processo de sua dissolução, diferindo não só de outras coisas, mas, sobretudo, de si mesmo.

O método intuitivo serve às análises sobre patrimônio cultural ao considerar seus objetos como heterogeneidades em mutação contínua, a fim de que sejam verificadas suas diferenças internas, que os desprendem da homogeneidade e materialidade do utilitário, lançando-os na ação de sua diferenciação e duração, rastreando, ainda, a performação daquilo que neles dura e se diferencia. Abordar o fato cultural sob tal ótica é submetê-lo a uma investigação norteada por seus procedimentos e recursos próprios, as tendências que convergem naquele fato mesmo e como tais inclinações duram, atuam, performam ou se diferenciam em outros fatos culturais.

 

Atualização e dramatização

Diferenciação não é algo estabelecido, mas, em processo. É a colocação em andamento no real daquilo existente em outra instância, ou seja, de um virtual, de maneira que ambos coexistem e se conduzem constantemente de um a outro, num processo de passagem do virtual ao atual, que Deleuze chama de atualização, o responsável pela singularização e multiplicidade dos entes.

É necessário diferenciar o par “virtual-atual” do “possível versus real”, em que o possível pode vir a ser, mas nada muda nele no processo de realização; e do potencial versus atual, em que o processo é de atualização, havendo relação direta entre ambos. Para que a atualização não seja só a culminação de uma potencialidade determinada, é preciso que ela se torne dramatização, que uma diferença se acrescente ao evento atual – que não advenha de uma essência, mas, de um círculo problemático, como no caso em que a semente não é o poder vir a ser árvore ou a árvore não é a realização do vir a ser da semente, mas virar árvore é um dos problemas da semente.

No caso de um objeto cultural, pode ele ser considerado como lugar da performação, espaço dramático, que acontece de modo problematizante de si, de sua esfera e do mundo. É certo que não surge de pronto, como é certo que não se esgota em si mesmo, advém carregado de ânsias que se diferenciaram em tentativas, propostas e questionamentos em diversos momentos históricos e culturais, sendo possível presumir que duram em performação.

 

Bibliografia

BERGSON, Henri. Matière et mémoire: essai sur la relation du corps à l’esprit. Paris: Quadrige/Presses Universitaires de France, s.d. [Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito (trad. Paulo Neves). São Paulo: Martins Fontes, 1999].

DELEUZE. Gilles. Le bersonisme. Paris: Quadrige/Presses Universitaires de France, 1966 [Bergsonismo (trad. Luiz B. L. Orlandi). São Paulo: Editora 34, 1999].

_______________. “O atual e o virtual”, in Éric Alliez. Deleuze filosofia virtual. (trad. Heloísa B.S. Rocha). São Paulo: Editora34, 1996, p. 47-57.

­­_____________. “Bergson, 1859-1941 (trad. Lia de Guarino), in LAPUJADE, David (org.) / ORLANDI, Luiz B. L. (org. da eb. Brasileira). A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2010, pp. 33-46.

_____________. “A concepção da diferença em Bergson” (trad. Lia Guarino; Fernando Fagundes Ribeiro), in LAPUJADE, David (org.) / ORLANDI, Luiz B. L. (org. da eb. Brasileira). A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2010, pp. 47-72.

_____________. “O método de dramatização” (trad. Luiz B. L. Orlandi), in in LAPUJADE, David (org.) / ORLANDI, Luiz B. L. (org. da eb. Brasileira). A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2010, pp. 129-54.

KOBOL FORNAZARI, Sandra.“O bergsonismo de Gilles Deleuze”, in, revista Trans/Form/Ação, 27 (2), 2004, pp. 31-50.

 

[1] Conforme a explicação de Gilles Deleuze, a intuição, que é o método do bergsonismo, “não é um sentimento nem uma inspiração, uma simpatia confusa, mas um método elaborado, e mesmo um dos mais elaborados métodos da filosofia. Ele tem suas regras estritas, que constituem o que Bergson chama de precisão em filosofia (DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 7; grifo do autor).

[2] A apresentação de aspectos de uma filosofia da diferença, conforme concebida por Bergson e retomada por Deleuze, tem, neste ponto, a intenção de aplicar elementos metodológicos e conceituais às análises de objetos/produtos da cultura, considerados aqui como as demais coisas (objetos, indivíduos, fatos), como puras qualidades, em sua heterogeneidade e transformação constantes.

[3] O problema, se bem apresentado, encerraria em si já sua solução, que viria dos termos, de sua disposição e das condições em que é engendrado; é a aplicação do critério de veracidade e falsidade à apresentação do problema e não apenas à sua solução. Havendo, então, dois tipos de falsos problemas: os inexistentes – como as questões do não ser, da desordem e do possível – ou seja a negação daquilo que é; e os mal apresentados, que tratam as misturas de naturezas, dos mistos mal analisados (Deleuze, 1999, p. 8-14)

[4] As diferenças de grau são matéria e extensão; pressupõem espaço, de modo que é preciso realizar a divisão do misto espaço e duração (tempo). Um exemplo de misto a ser separado seria a representação corrente de tempo, que é penetrada pelo espaço, sendo, necessária para sua compreensão a cisão entre aquilo que é pura duração e pura extensão, para que se deixe de ver as diferenças de grau onde há diferenças de natureza.

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